#8 - A MATERNIDADE É SELVAGEM - Uma breve análise do filme Canina
Filme da Disney sobre maternidade une fantasia com o drama real de ser mãe sem rede de apoio.
Assisti ao filme Canina (em original Nightbitch) da Disney sem pretensão alguma, quis conferir por ter uma atriz por quem sinto uma simpatia sem motivos aparentes. Eu só sabia que era sobre uma mãe que começou a ter uma experiência surreal.
Pareceu uma ideia muito promissora para o que eu precisava naquele dia: sentar e ver um filme sem grandes parafernalhas cults ou roteiros dignos de Oscar - apesar de eu amar esse tipo de filme.
Sinopse do filme
O filme nos apresenta a uma mãe que largou sua carreira como artista plástica para estar 100% focada na criação de seu filho, um menininho muito fofo com mais ou menos 4 anos. Exausta pela rotina, sem poder contar com rede de apoio ou a presença do pai da criança, que vive trabalhando, ela começa a ter experiências sobrenaturais.
Uma mãe cadela
Logo de cara vemos a típica cena de uma criança chorando no supermercado, fazendo a famosa birra e colocando tudo que vê pela frente no carrinho. E não, não é o filho da protagonista. Ali é como se ela pudesse enxergar de fora as dificuldade com que precisa lidar quase que diariamente por ser mãe. E atire a primeira pedra a mãe que nunca pensou “ainda bem que não é o meu filho dessa vez”.
É interessante porque boa parte do filme, pensamos que ela é mãe solo. Pois é ela quem acorda todos os dias no mesmo horário, faz o mesmo café da manhã, vai aos mesmos lugares e conta as mesmas histórias para o filho dormir. É ela quem acorda no tapete da sala e precisa fazer cavalinho, sorrir para o filho mesmo querendo chorar, inventar formas de distrair a criança, ir à clubes literários para bebês e criar toda uma rotina onde não há qualquer tempo livre para si.
Eu nem preciso dizer que o pai da criança mal consegue ficar com ela por 5 minutos sem gritar pela mãe, né? Esse cenário é bem típico, infelizmente.
A personagem é uma mãe exausta, solitária e culpada. Se você for mãe já deve saber que a culpa é quase que intrinseca à maternidade. A cobrança externa é enorme, mas a interna não fica atrás. Queremos ser as melhores, dar o que não tivemos como se fosse isso que determinasse a felicidade dos nossos filhos.
Voltando à história..
Tudo começa a mudar, quando depois do ápice do cansaço, uma “fantasia” toma conta do corpo da protagonista, algo que a conecta a outras mulheres de uma forma verdadeira, fazendo com que ela comece a ter hábitos estranhos. O curioso é que a partir desse momento há uma sensação de reencontro consigo mesma, um despertar daquilo que estava soterrado pelas boas maneiras e cursos de como ser boa mãe.
O filme utiliza a metáfora de uma mãe se transformando em cachorro como um caminho para ajudar a personagem a sair de uma profunda exaustão e falta de perspectiva que poderia levá-la a uma depressão.
É dando espaço para a fantasia, desprendendo-se das normas sociais e etiqueta, - da persona de “boa mãe” - que ela consegue retornar a si mesma.
Isso me lembrou o livro Mulheres que Correm com o lobos da escritora e Analista Junguiana Clarissa Pinkola Éstes. Ela trata dessa temática da mulher afastada de sua parte instintiva e criativa, mostrando o quanto o corpo definha e a vida vai ficando opaca quando nos afastamos por completo da nossa chama criativa, da nossa natureza selvagem.
A capacidade criadora da mulher é seu trunfo mais valioso (...) A natureza selvagem derrama-se em possibilidades ilimitadas, atua como um canal de vida, revigora, mitiga a sede, sacia nossa fome pela vida profunda e selvagem.
É nesse encontro com o animal em si que suas partes afastadas, suprimidas pelo papel como mãe, começam a ser integradas novamente em seu cotidiano.
A parte artista volta a ganhar espaço, trazendo coragem para que ela decida se separar. Uma decisão que força o pai a passar mais tempo sozinho com o filho, dando condições para que ela volte a se dedicar ao seu trabalho como artista. Poderia ter parido por aí.. seria um bom final.
A partir daqui vem spoiler do final
O filme meio que estraga toda essa construção quando a personagem engravida de novo no final. Não que isso não aconteça na vida real, quantas mulheres vocês não conheceram que quando estavam indo bem na carreira ou em outra área da vida acabaram engravidando? Como se o passo seguinte fosse tão ameaçador e grandioso, que a única saída fosse se envolver mais uma vez nos cuidados de outro ser - não que ser mãe não possa ser algo tão grandioso quanto. Sou mãe, sei o trabalho que dá e o quanto é extremamente difícil.
Uma vez li no livro da Emma Jung, algo sobre como algumas mulheres adiavam o seu crescimento interno por conta da maternidade, de maneira inconsciente, e achei terrível. Fechei o livro na mesma hora, senti raiva, achei aquilo cruel e um pouco elitista, mas tempo depois observando ao meu redor vi que o que ela dizia fazia sentido. E isso não queria dizer que ela estavisse julgando as mulheres, era um recorte de uma parte da história da maternidade que ela, uma mulher branca e rica do século XX, pesquisou e percebeu. Somos múltiplas, vivendo em realidades diferentes, então as decisões e oportunidades não são iguais para todas.
Quando a personagem teve a chance de voltar a ser uma artista, expor e quem sabe ir para outro nível em sia carreira, o filme resolve que ela vai ser feliz com o marido de quem ela havia decidido se separar e ter mais um filho e fim. Como se o filme não intencionalmente dissesse: olha como as coisas são, esse é um retrato da vida real. - goste você ou não.
O marido reconhece que não a enxergou, ok, as pessoas podem se arrepender, mas o perdão precisava chegar tão rápido? Ficou forçado, como se o mais importante fosse dar ao filme um final feliz de contos de fadas. Mas é a Disney, né, o que eu esperava?
Bem, ao menos há a mensagem de que a maternidade não é bonitinha. Podemos amar os nosso filhos, eles serem as coisas mais lindinhas da face da terra, mas maternar nos moldes que conhecemos até hoje tá longe de ser algo fofo.
Quanto mais isso for mostrado, melhor para nós mulheres que muitas das vezes remoemos uma culpa enorme por não amar ser mãe. Não amar a maternidade não é o mesmo do que não amar as crianças. Reconhecer o quanto ela é exaustiva muito menos.
Dentro de nós há uma força selvagem e a maternidade também é permeada por ela. Ainda bem. Ou seríamos mães super protetoras que não deixam os filhos experimentarem o mundo sem calçar os pés.
Um pouco mais sobre maternidade (a minha)
Antes de ser mãe, aos 17 anos, eu tinha o sonho de comercial de margarina. Eu achava que felicidade era casar, ter filhos e uma linda família, mas sei que não formei essa ideia sozinha. Eu via isso em tudo. Bem, fui mãe, depois fui mãe de novo e minha experiência com a maternidade foi difícil. Eu amo meus filhos, mas eu não amei a maternidade.
A decisão de ser mãe, no meu ponto de vista, deve vir de um lugar de muita consciência. Uma criança precisa de tempo de qualidade, dentre outras coisas, então, se uma mulher decide por ser mãe, e aqui digo mulher porque ainda vivemos em um mundo onde essas responsabilidades pesam muito mais em nós - tudo que escrevo é sobre nós e por nós.
Bem, se uma mulher está consciente do que quer para si mesma, e ela decide ser mãe, acho importante considerar que por um tempo a criança precisa ser a coisa mais importante da vida. Para isso, é inevitável adiar planos, ser paciente e mergulhar na maternidade.
Uma mulher pobre que precisa trabalhar obviamente não poderá fazer isso. Eu não pude; estava terminando o ensino médio. Mas eu não tinha a consciência de hoje, muito menos a maturidade.
Num mundo ideal, uma mulher que desejasse ser mãe, teria rede de apoio e poderia dividir a criação com o pai da criança, além de ter uma comunidade em volta que iria contribuir e mais politicas públicas que lhes garantissem direitos e cuidados.
Mas no mundo real, se você é mulher, pobre e deseja ter um filho, saiba que os sacrifícios serão enormes. E nada disso diz respeito ao amor pela criança, isso é um fato. O que também não quer dizer que seja impossível que uma mãe possa conciliar a maternidade e as outras coisas, ainda que ela tenha limitações. Foi o que tentei fazer, mas não sem consequências.
Adorei o texto e fiquei com vontade de ver o filme. Mas, então, é um filme adulto né?